quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

A BARATA, UMA REFLEXÃO INUSITADA.



A BARATA, UMA REFLEXÃO INUSITADA.


O calor estava excessivo, fui tomar uma ducha, coisa rápida já que a água tem muita pressão nos edifícios de vários andares.
O pequeno box de oitenta centímetros de lado faz um quadrado perfeito, com três paredes de azulejo e uma porta de vidro blindado. Devidamente despido para o banho, fechei a porta e dei vazão ao liquido. Súbito do canto direito da porta sai uma barata em grande agitação. A mesma se dirigiu em direção ao piso.
Como moro em cidade de veraneio, no verão é habitual a visita de tais insetos. Grande parte dos apartamentos de veranistas passam o ano fechado e, com a presença de moradores estas saem e invadem os apartamentos dos vizinhos.
Como em quarenta anos de medicina jamais tive notícias de alguma pessoa adoecida por baratas, deixei a chinelada para depois do banho e continuei me ensaboando.
O inseto correu os primeiros oitenta centímetros em direção da quina da parede, muito agitado, o que atribui a minha presença. Tentou em vão subir nos azulejos; correu o mesmo tanto a outra quina e parou de cabeça para o alto, como esperando uma ocasião para buscar refúgio.
No meu modo de pensar baratas nadam, vivem em banhados e galerias pluviais onde há bolor do qual se alimentam, continuei o banho. Não se passara meio minuto. Acabara de me ensaboar e eis que o inseto vem boiando em direção ao ralo, com a barriga para cima e as pernas encolhida. Estava morto. Nunca imaginei que ficaria surpreso com tal morte, mas fiquei pensativo.
No meu modo de imaginar o mundo, sempre acreditei que a vida é um mero efeito do planeta e a ele pertence, nunca diferenciei uma vida animal de uma vida humana. A chinelada na barata é apenas uma questão de domínio de espaço e segue as regras da natureza, mais nada. Me constrange mas faz parte do jogo.
Lidar com a morte faz parte de minha profissão, em enfermarias e Pronto Socorros a morte acompanhava os dias de trabalho, é um contato íntimo. Mas esta morte da barata era diferente.
Na medicina recebemos pessoas doentes, acidentadas, afogadas onde nosso trabalho é restituir a vida. O óbito é sempre uma hipótese presente; tanto é que nos grandes serviços, com todas especialidades se realiza regularmente a Reunião de Verificação de Óbitos, não para atestar displicência, porém para em conjunto verificar se pode haver melhores alternativas para os doentes que nos procurarão com patologias semelhantes.
Para nós a morte é sempre uma perda e sensação de limitação de nosso conhecimento, onde um ser doente com potencial de não cura, não conseguimos inverter a situação. Vemos a morte como derrota, não pensamos no que representa a vida. Apenas lutamos para mantê-la.
No caso da barata minha visão foi o oposto. Era um ser vivo, ágil, não doente que em menos de um minuto morreu num meio em que se aproximava do que vivia. Foi neste momento que realmente compreendi a fragilidade da vida. Basta um instante, um descuido ou um acaso e toda energia desaparece com as patas cruzando o peito. O dia a dia, mesmo em presença de doentes que faleceram e de baratas que levaram chineladas nunca tinha me oferecido esta visão real que a vida é tão efêmera e frágil e se desmancha em segundos.
Terminado o banho, ainda olhei consternada para a barata morta para ver se se movia.

22/01/2015
Tony-poeta



Nenhum comentário:

Postar um comentário